sábado, 8 de agosto de 2015

Sem Revisões

Ele não sabia se atravessava aquela rua ou não. As pessoas iam e vinham como se fosse a coisa mais normal do mundo. E era. Você presta atenção se os carros vêm ou não, e então atravessa. Só ser cauteloso, não? Mas para ele, não era nada tão simples assim.
            Eram pessoas das mais diferentes possíveis. Ele só observava. Em pé. No mesmo lugar que foi deixado no dia anterior. No dia anterior? Ele realmente não se recordava mais se fazia uma hora, um dia, uma semana, um mês, que ele estava ali. Ou tentaria ele se enganar? Ele sabia muito bem. Mas preferia se esquecer. Preferia observar aquela velhinha que, mesmo com sua idade, andava para o outro lado da rua como se já tivesse atravessado várias vezes. E, de fato, já havia.
             Ou então, ele observava aquele jovem que, com tanta ânsia em chegar ao outro lado, foi atropelado por um carro que passava em alta velocidade para pegar os desprevenidos de primeira viagem. O jovem sobreviveu. Sua audácia em chegar ao outro lado também.
Então o que havia de errado com ele que não atravessava? Por que todos atravessavam, e mesmo que coisas ruins acontecessem continuavam tentando, mas só ele não conseguia? Por que haviam pessoas de muletas, com bengalas, muito mais calejadas que ele, que passavam e, um dia, não voltavam mais, e mesmo assim ele não conseguia dar um novo passo em direção ao lado de lá?
O fato é que ele já havia feito a travessia uma vez. E ele era tão inocente. E ele se entregou tanto ao lado de lá. E ele achou que fosse permanecer por lá para sempre. Acontece que ele achava que estava lá, mas se encontrava na beira da calçada, e foi brutalmente jogado para o lado de cá, por um ciclista que praticava algumas manobras. Depois disso, ele não conseguiu mais dar passos. Ele ficou congelado. Uma vez, chegou a tentar chegar lá, mas no meio do primeiro passo, retornou.
Convenceu-se de que aqui, onde ele estava, era o melhor lugar para ele. Mas nem ele conseguia se enganar. Ele queria chegar lá. O medo o havia paralisado. Não queria ser atingido novamente. Não conseguia dar passos firmes. Foi escravizado no único lugar onde não podemos ser escravizados. Tornou-se carrasco de si mesmo.
Desde então, todos passam ao seu lado e não percebem que ele já sentou. O lugar já tem até o nome dele. Esperava que o dia da travessia chegasse. Mas como haveria de chegar se ele não queria mais estar nem de pé? 

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